Memorando

Lembro-me do dia em que a história se repetiu. Não havia os indícios de antes. Havia algo que não era meu. O mundo bamboleou ao redor de outras cinturas, mas eu não girei. Fui girado, vendo o mundo rodar. E ao olhar para o lado ouvi que minhas suspeitas eram bem fundadas. Foram sussurros impressos no coração. Palavras que preencheram um vazio imenso com outros vazios possíveis e ainda não perceptíveis. “Meu Deus, isso está acontecendo?”. De um lado, a decisão firme de fazer a coisa certa. Do outro, desolamento, dor, desesperança e esperança de um futuro como o de um passado. Passado? Auto lá. Que indulgencia ignorante! Deixe essas coisas pra lá, moça. Não anote isso. Deixe o registro como está. Ó, já está tudo anotado. Regulamentado, fichado e arquivado (semana que vem disponível em PDF online). Porque hoje se sorri muito mais bonito nestas partes da cidade. Vozes felizes, músicas abafando bombas.

Com sua licença, eu fui à luta e voltei. Marcando uma posição de guerra no front de combate. Não façam isso, crianças. Deixe que os adultos manejem facas e objetos cortantes. Segui. As palavras surgiram maquinalmente, como um mantra. Sentido, comando, lance, recue, avance. As reações, o olhar, os gestos eram os mesmos que foram os meus um dia. Doei, apoiei e momentaneamente me vi destituído de mim. Por um longo tempo eu havia carregado aquele fardo, e enfim passava a frente. O que ficou apenas foi uma marca de pontos na pele, uma cicatriz na mão. Dali em diante, passaria a estagiar no nível da segurança inquebrantável daqueles que conhecem o que muitos desconhecem. Mas que na realidade sabem que nada sabem. Ao menos, eu tinha a estratégia e a reação. O caminho da roça, o comportamento possível. Manejando tudo em um procedimento operacional padrão que, acima de tudo, apoiava a concórdia, o equilíbrio, que contornava o pandemônio e caminhava ao campo livre. A minha frente eu via a fala do silêncio, os chamados do céu. Quem caia, chorava e ria. Quem levantava ficava doente do pé e da cabeça. Juro pra você que passei reto, segui naquela trilha, sabe? Ouvi e assisti a tudo com a dor que no fundo ainda me dói, o presente ver o passado vivo na vida de alguém que não era eu. Alguém de uma vida sem mim. Que é um número, que possuem marcas, ganha patentes, vai ao front. É o mesmo em outros, mas nunca será em si igual ao que foi a um minuto atrás. Antes de a bomba explodir. Antes do segundo Adeus. Antes do primeiro Olá.

 
Menina de Pano na penumbra de um eterno caminho entre a noite e o dia.


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