"Minha carne é de Carnaval..."

Quando fui questionada por um pesquisador canadense sobre maneiras de como o brasileiro poderia entrar em contato com a Antiguidade, mencionei o Carnaval. Chocado, ele ouviu que uma grande escola de samba (Portela) em 2016, abriu o desfile com Odisseu em um barco no mar. Disse que o objetivo era contar a história da humanidade, e Odisseu nos convidava a "embarcar" com ele nessa história. Ele provavelmente não entende a importância e a grandeza do Carnaval para o Brasil. Que o carnaval representa a maneira como demonstramos nossa relação com o passado. Talvez eu volte a conversar com o canadense e conte que mais uma vez a antiguidade foi referência para compreender os múltiplos significados da escravidão ao longo dos séculos. Como os escravos egípcios, apresentados pela Paraíso do Tuiuti, mostrando que a mistura entre Brasil e Egito tem muito charme pra fazer bonito no carnaval.
Pois há mais de um século o carnaval reinterpreta os dramas da vida humana e devolve ao público através da ironia, do protesto, da celebração e da fé (no sentido amplo do termo). É um teatro a céu aberto, que pode durar 40 minutos ou 4 dias. Porém o carnaval é uma janela que relê o passado, rindo dele. Mesmo que misture um riso de paz com o de raiva, ele ri. Seja do "passado-passado", ou do "passado-presente".
Nesse sentido, a Paraíso do Tuiuti mais uma vez exemplificou de maneira brilhante tudo isso. "Meus Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?" dizia o samba enredo em clara retórica. O tema traz a tona uma discussão que vem a superfície em momentos sociopolíticos decisivos (como o atual), desde a abolição da escravidão em 1888. E que recentemente tem sido reatualizada por intelectuais mainstream como Jessé de Souza (A Elite do Atraso, 2017). Porém considero que somente o carnaval consegue traduzir de maneira clara e objetiva questões como essa para o grande público. Demonstrando que o conceito de liberdade não somente se resume a se desfazer de grilhões de ferro. As cenas das carteiras de trabalho queimadas indicam que o sonho do "bem estar" foi reduzido às cinzas. Principalmente para as populações em condições sociais vulneráveis, e com baixo respaldo governamental como negros e indígenas. Esses, em larga escala, talvez apenas assumiram outras formas de submissão. O abre alas é claro nesse sentido: os negros (escravos) alegoricamente continuam "acorrentados".
Os responsáveis por isso são traduzidos pela alegoria da mão branca gigante ("mão grande") como aqueles que "metem a mão" no dinheiro, que silenciam, que controlam, que manipulam. Manipulam uma classe média infantilizada que boia em patos amarelos à espera de um salvação que os tornem os vitoriosos (camisa da seleção brasileira), os eleitos à serem salvos. No último carro, um vampiro presidencial, como aquele que suga o sangue dos indivíduos e permanece intacto, apesar do sofrimento alheio. A alegoria não poderia ser mais clara. Fomos "salvos" por aquele que drenou a esperança de viver, nos transformando em meros fantoches a sua mercê. Um novo Senhor de Engenho, que comanda muitos escravos. As penas de sua roupa brilhante, os cabelos e maquiagem tosca expressam o ridículo político de um pavão carcomido que somente se mantém em pé às custas dos "outros".
Você pode não gostar do carnaval (eu mesma não sou uma grande foliã), mas é preciso admitir, ele é o nosso verdadeiro réveillon. É a partir dele que desencarnamos e lavamos a alma para começar mais um ano.

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