Cínica(o), eu?

Artemisia Gentileshi, pintora romana do fim do período renascentista (1593-1656) desafiou a percepção da Alegoria da Pintura como representação "ideal" ao desenhar seu próprio rosto na face da Alegoria (Autorretrato como Alegoria da Pintura, 1638-1639). Ao quebrar tal cânone, Gentileshi demonstrava que sua visão de mundo enquanto mulher era o principal elemento da obra, que ia muito além da autoria. Sua perspectiva pessoal servia como crítica ao poder masculino, demonstrando na maioria dos quadros mulheres fortes. 
Em seus auto-retratos, seu olhar é sempre desafiador. Suas temáticas preferidas, a morte e a violência contra o masculino são visões cínicas, porém, assertivas. Elas possuíam o objetivo de reverter, mesmo que fosse através da pintura, a ordem de quem deveria ser "silenciado". 
Ser cínico (não me refiro ao movimento filosófico grego) é se portar como a pintora. É inverter e afrontar a ordem e as convenções sociais, como diz o dicionário. É ser imprudente, descarado, sem vergonha, sem pudor. 
Creio que para seguir em frente diante de tantas violências reais e simbólicas incontáveis mulheres, negros, gays e pobres ao longo dos séculos foram cínicos, irônicos, debochados. Como não tratar com ironia e sem vergonha quem se fortalece com o descaso, o sofrimento e a força do outro?
Essa "arma" cotidiana é simples, fácil e não custa nada. Não machuca, não mata. Mas ela é poderosa, pois desafia, através do olhar, da palavra, do gesto, da representação, da ironia os insultos e injustiças. Muitas vezes, quando não há forças nem recursos físicos e sociais, o cinismo e a ironia são os instrumentos de sobrevivência que mantém o subalterno, o "fraco" de pé. O deboche é a arma do fraco, já dizia Michel De Certeau. É a tática daquele que não pode e não tem. Ela representa o desafio e o descaso pelo estabelecido, pela regra, pela norma, mesmo sabendo que são arranhões superficiais e incômodos de leve pois simbolizam aquilo que uma andorinha de verão não pode modificar sozinha. 
Foi assim que o Carnaval surgiu e cresceu na Europa e foi relido no Brasil, por exemplo. Com objetivo de espantar e vencer a morte, e elevar o injustiçado a condição de Rei/Rainha por um dia. E é assim que a crítica aos poderes estabelecidos muitas vezes é realizada. Com cinismo, como motivo de piada e gozação ao malhar judas e bater bolas pelas ruas incomodando quem incomoda.

Quem é cínico não tem mais nada a perder, pois já perdeu demais.

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